terça-feira, 20 de outubro de 2009

Um desconhecido no carro

Parece que já o tinha visto em algum lugar, mas era difícil me recordar com o sono que estava sentindo.
Mesmo com sono e cansada, para não ser mal educada, quis me manter acordada, interagindo com as outras pessoas.
As conversas eram de cunho engraçado, mas de vez em quando eram interrompidas pelo homem misterioso.
Ele requeria muita atenção.
Ás vezes tornava-se monólogos.
Só ele queria falar, só ele queria atenção.

Falava de tudo: Estradas, carros, caminhos por onde já tinha ido, restaurantes que já tinha freqüentado, dos amigos que fez e da foto que tirou.
Suas conversas não eram de cunho interessante.
Queríamos desviar o assunto, mas era difícil.
Ele era insistente. E não interagia. Só queria falar.
Me parecia um homem carente de ser ouvido.
Com o tempo, as conversas foram se acabando.
O caminho era longo e não sabíamos quando chegaríamos ao destino.

Adormeci e acordei diversas vezes durante o trajeto.
Geralmente acordava com a voz de um co-piloto alertando sobre caminhos, buracos e pedágios.
Em uma das paradas para abastecer, num posto qualquer de estrada, o tal desconhecido se fez imperar na vontade de todos. A voz autoritária desconcertou as pessoas à volta e, calados, obedecemos.
Olhos envergonhados de “deixa ele, é assim mesmo” ou de “o que está acontecendo” imperaram no ar.
Uma parte do caminho permaneceu silenciosa.
Algumas pessoas dormiram, outras brincaram de cochichos ao pé do ouvido.
Nada que tirasse a atenção do tal homem.

Dirigiu por horas, visivelmente cansado.
Já de noite, todos dormindo, resolvi puxar papo com aquele homem de rosto franzido, cabelo grisalho e olhos claros e distantes.
Falamos principalmente sobre o tempo e de como ele passa rápido.
Crianças se tornam adultos num piscar de olhos.
No meio da conversa, uma pausa.
Depois se pergunta como não viu o tempo passar.
Compara a viagem de carro com a vida.
As paradas, quem desce e quem sobe, as viagens e as horas passadas.
Me veio lembranças de uma infância, longas viagens dentro de um carro, cantando músicas sertanejas, acenando para caminhoneiros e mexendo em seus cabelos.

Foi então que eu descobri de onde o conhecia.
O desconhecido? Meu pai...
Aquele homem que eu convivi quando criança retornou do passado em uma simples conversa dentro de um carro.
Por alguns longos momentos, que me deram saudade de muita coisa...
Eu o ganhei como no dia em que o ensinei como preparar minha mamadeira.

As pessoas foram acordando e os assuntos sobre as suas opiniões voltaram.
Eu o perdi de novo na última parada para abastecer.

[Ouvindo: Beatles – Lucy in the Sky with diamonds]
“A girl with kaleidoscope eyes, cellophane flowers of yellow and green, towering over your head. Look for the girl with the sun in her eyes and she´s gone. Lucy in the sky with diamonds”